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15.1.07

RETROSPECTIVA: DEUS SALVE ESTA CASA SANTA (1972)

O som está se estendendo pela cidade, tomando conta dos teatros, começando a existir de verdade. É o Oficina, o Aquarius, o Equipe, o Band 13. Pode ser um começo. Mas, cuidado: por enquanto, ele ainda é um som pago.

Pelas ruas, a euforia: bandeiras, medalhes e sirenes passeiam sua morte por entre os escombros de acrílico e concreto armado. Vibram os cadáveres condescendentes e os monte-de-carne andantes.

Pelo undergroud, também a euforia: as viagens misturam-se ao sabor da moda e aos toques de intelectualismo oriental, zen, equilíbrio-consigo-mesmo, macrobiótica, Grotowsky e Jung, compondo um multicolorido painel de ilusões. Estamos numa boa, quem sabe de mim sou eu, o negócio é curtir, estou ligado nas coisas que pintam, falou?

A nação respira no compasso da monotonia asfixiante da Nova Era. O underground não sobrevive ao caos, despoja-se de sua característica de cultura alternativa e se torna cultura pitoresca-folclórica-consentida. Papai acha bonito os cabelos do filhinho e não liga que ele puxe um pouco, desde que ele continue estudando e não se meta em transas mais perigosas.

Quem não der muita bandeira, pode ser que escape. Se você não berrar, não sair muito louco pelas ruas, não fizer um som ouriçado demais, não disser palavrão e não fizer amor com a janela do quarto aberta, pode ser que os vizinhos não chamem a polícia.

E se você obedecer ao saber museulógico de velhos mestres que passaram a vida toda fugindo do próprio corpo, se você aceitar que existam "professores" e "alunos", se você tiver saco de ler uma porrada de livros que só ensinam a se colocar de fora dos fenômenos, analisando-os como se fossem coisa morta, enfim, se você conseguir aturar uma universidade perdida nos escombros das primitivas eras, no museu de relíquias e antiguidades, na subserviência grotesca à indústria e ao poder, então você tem uma carreira, uma profissão, um canudo (pra substituir aquele que você não deve estar usando), um anel no dedo e uma argola no pescoço, além de uma profissão e um merecido status: F.P. (filho privilegiado...).

Sonhamos, não vivemos. Sonhamos na vitrola, nas viagens, nos corpos dos outros. Pelas ruas, a realidade se impõe com as forças do Sílvio Santos mais o delegado Bellot. E a propaganda é a alma do negócio. E quem não está comigo, está contra mim, não merece viver.

Em meio a tudo isso, vamos sobrevivendo, olhando embasbacados os irmãos lá da Amerika encarando o tempo todo. Mas, como nós (ainda) não temos saco pra encarar, então imitamos só o cabelo, as viagens, a gíria e a moda. E brincamos de homens maus, posando de loucos mas se cagando de medo só de ouvir uma sirene (até de ambulância).

As defesas, as barreiras e as repressões estão dentro e fora de nós; não dá pra arrebentar as de dentro sem suprimir as de fora. Precisamos de espaço pra execer a liber/sensualidade (re)conquistada, espaço vital, pra respirar. Ninguém é livre sem conquistar um território seu, onde o Esquemão já não possa atingi-lo.

Os irmãos pirados da Amerika mantêm suas comunidades lutando por elas e lutando fora delas, contra a guerra, a tecnologia destruidora, contra os porcos. Assim eles garantem o direito de existir.

(carta de leitor publicada pela Rolling Stone brasileira, com a assinatura de "André Mersault")

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