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31.1.09

CESARE BATTISTI: MARTÍRIO SEM FIM

Foi das mais decepcionantes a iniciativa do ministro Cezar Pelulo, relator do processo de extradição de Cesare Battisti no Supremo Tribunal Federal, de adiar mais uma vez o desfecho de uma pendenga que já está verdadeiramente decidida desde o momento em que o governo brasileiro concedeu o refúgio humanitário ao perseguido político italiano..

O ponto final da novela seria na próxima 2ª feira. Não será mais: Peluzo concedeu à Itália cinco dias para apresentar seus argumentos, aliás sobejamente conhecidos.

Quando um caso ganha a repercussão que este adquiriu, trava-se uma verdadeira guerra de versões, tão discrepantes entre si que torna quase impossível a qualquer cidadão isento situar-se nesse cipoal de informações e interpretações conflitantes.

Então, chega um momento em que se deve confiar, acima de tudo, na própria sensibilidade e espírito de justiça.

O que salta aos olhos no caso é que Cesare Battisti foi inicialmente condenado por delitos menores e anos depois, graças à delação premiada de um indivíduo obcecado em transferir suas responsabilidades para costas alheias, recebeu a pena máxima.

É indiscutível que esse julgamento final transcorreu num momento político no qual já não se faziam verdadeiros julgamentos na Itália, mas sim linchamentos com verniz de legalidade.

Para quem, como eu, passou pelos tribunais de exceção da ditadura militar, há um odor inconfundível de armação exalando do processo em que, de um momento para outro, apareceram testemunhas prontas a jurar que era culpado quem antes ninguém inculpava.

Quando o dedo do Estado apontou para Battisti, no auge do macartismo à italiana deflagrado pelo assassinato de Aldo Moro, todas as peças se juntaram para formar um bom dossiê acusatório.

Que não passa de uma obra de homens falíveis, capazes de pautar suas ações por sentimentos menores como a covardia, o oportunismo e o revanchismo; nunca a tábua dos dez mandamentos, como os reacionários tentam fazer crer.

Ficaram de fora desse dossiê as torturas a que os acusados foram submetidos, ao arrepio de qualquer lei e cuja mera existência na fase policial é suficiente para contaminar qualquer processo judicial.

Também se fez vista grossa ao fato de Battisti ter sido julgado à revelia, não exercendo plenamente seu direito de defesa. Preferiu-se dar crédito a uma carta com sua assinatura, teoricamente instruindo o advogado sobre a linha a ser adotada no tribunal.

No entanto, a perícia insuspeita de uma das principais especialistas francesas constatou que a assinatura de Battisti precede de vários anos o texto que outra pessoa, com outra caligrafia, acrescentou.

Ou seja, antes de fugir da Itália ele deixou assinada uma carta em branco para que o advogado em quem confiava pudesse providenciar alguma procuração que se fizesse necessária.

Ao invés disto, tal advogado, priorizando outros réus, não só colocou um texto altamente lesivo aos interesses de Battisti, como deu um jeito de fazê-lo chegar às mãos dos acusadores.

Uma farsa sórdida que, por incompetência ou má fé, o tribunal inquisitorial italiano avalizou.

E há aberrações jurídicas como o fato de que crimes ocorridos na década de 1970 foram enquadrados numa lei dos anos 80, para que se pudesse impor a Battisti a prisão perpétua.

Há até quem encontre argumentos para justificar a retroatividade, mas nosso senso comum se rebela.

Se couber ao Estado fixar, depois de cometido um delito, qual a pena cabível, abre-se a porta para todo tipo de perseguições e injustiças.

Cuspir no chão pode ser pretexto para condenação à morte, num estado policial. E a Itália, com seu passado fascista não muito distante, está longe de poder ser considerada uma nação imune ao totalitarismo.

Na excelente matéria de capa que a revista IstoÉ acaba de publicar sobre Battisti ( http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2047/artigo124312-1.htm ), um detalhe menor me chamou a atenção: a tendenciosa versão italiana era de que ele não passava de um pequeno marginal que, preso por delitos comuns, havia sido doutrinado pelos comunistas com os quais passou a conviver no cativeiro.

A verdade é bem outra, como se constata nestes trechos da longa entrevista: "Eu sou filho e neto de comunistas. Quando tinha dez anos, andava com meu irmão, com toda a família, com um cravo vermelho na roupa. (...) Entrei cedo na juventude comunista. Depois, saí do partido comunista e entrei no que era o movimento de extrema esquerda. (...) Nessa época, nós financiávamos os movimentos com furtos, pequenos assaltos. (...) Era na Frente Ampla. Todo mundo praticava ilegalidades nesta época. Chamávamos de expropriações proletárias. (...) Era uma prática generalizada. Servia para financiar nossos cartazes, jornais e pequenas revistas. As primeiras rádios livres, por exemplo, foram financiadas por atividades ilegais".

O Estado italiano tem todo direito de desconsiderar em termos legais a componente política dessa "prática generalizada", mas nenhum de caluniar um cidadão, apresentando-o ao mundo como um trombadinha que aderiu tardiamente à luta política, com a insinuação implícita de que queria apenas uma cobertura para dar vazão a seus instintos criminosos.

Quantas outras mentiras contra Battisti integrarão a história oficial que os italianos tentam nos impingir?

Enfim, estamos, como sempre, no terreno minado do campo de batalha em que se defrontam os inimigos e os partidários da justiça social.

Os primeiros querem ver exemplarmente punido um homem que lutou por seus ideais -- não pelos crimes que lhe imputam e pelos quais está muito longe de haver sido condenado em tribunais civilizados, mas por ser um símbolo da esperança num mundo bem diferente do que aí está.

E nós o defendemos em nome da solidariedade para com os injustiçados de todos os tempos e da compaixão por quem já sofreu demais.

A perseguição sem fim que é movida contra Battisti equivale a um martírio que poucos suportariam.

Trinta anos se passaram desde os crimes que lhe imputam. E nem o pior dos detratores consegue encontrar evidência de que ele tenha continuado um extremista após sua fuga para a França em 1981.

A sanha vingativa contra um homem a quem fazem acusações nebulosas e que leva vida laboriosa e das mais sofridas há pelo menos 27 anos, é algo que só Freud conseguiria explicar a contento.

Se conseguisse sublimar a repulsa que tais caças às bruxas, em todos os tempos, sempre causaram aos melhores seres humanos.

22.1.09

GILMAR MENDES QUER QUE STF USURPE PRERROGATIVA DO EXECUTIVO

A imprensa finalmente revelou qual a carta que o presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes tem na manga para, em sintonia com a posição italiana – como ocorre desde que ordenou a prisão de Cesare Battisti em março de 2007 –, tentar ainda evitar a concessão do refúgio humanitário ao escritor, já decidida pelo governo brasileiro.

Quando o STF voltar do recesso, no dia 2 de fevereiro, Mendes colocará em discussão se o Executivo tem competência para decidir se foi comum ou político o crime cometido por um estrangeiro.

Ou seja, volta a bater numa surrada tese das viúvas da ditadura brasileira: a de que, ao responder ao fogo dos usurpadores do poder que impuseram o terrorismo de estado em nosso país e cometeram as piores atrocidades, os resistentes estariam cometendo crimes comuns.

Quer anular, com uma penada, o milenar direito de resistência à tirania, que desde a Grécia antiga inspira os melhores cidadãos a não se vergarem a déspotas.

Mendes já deu declarações públicas igualando as práticas hediondas cometidas pela ditadura de 1964/85 aos excessos porventura praticados por membros da resistência, convenientemente omitindo que, no primeiro caso, tratava-se de uma regra, uma política de estado não assumida formalmente, mas praticada generalizadamente; e no segundo caso, de exceções condenáveis, mas compreensíveis no contexto de uma luta que os resistentes travavam em condição de extrema inferioridade de forças, contra um inimigo que não hesitava em seqüestrá-los e executá-los ao arrepio de qualquer lei, como fez na Casa da Morte de Petrópolis e no final da campanha do Araguaia.

Incapaz de fazer valer sua tese no caso brasileiro, Mendes espertamente escolheu um que lhe parecia mais adequado para fincar uma cunha na nossa nobre tradição de acolher perseguidos políticos de todos os países e convicções: o de um ex-militante da ultra-esquerda italiana que combateu o compromisso histórico firmado entre a democracia-cristã e os comunistas.

Ocorre que, longe de ser caso isolado, o Proletários Armados para o Comunismo, no qual Battisti militou, era um dentre aproximadamente 500 grupúsculos de esquerda radical que confrontaram o Estado italiano na década de 1970, num fenômeno indiscutivelmente político e que foi enquadrado numa legislação criada com o único objetivo de combater a dita subversão.

Assim, as sentenças italianas contra Battisti afirmam que os delitos a ele imputados são integrantes de “um só projeto criminoso, instigado publicamente para a prática dos crimes de associação subversiva constituída em quadrilha armada, de insurreição armada contra os poderes do Estado, de guerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda no território nacional para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio País”.

Mas, o que era bom para a Itália, não era bom para o Brasil. Face à legislação brasileira, que veda a extradição de perseguidos políticos, os italianos não tiveram outra saída se não desdizerem o que haviam dito e tentarem convencer-nos de que Battisti não passava de um marginal qualquer.

Quando perceberam que não éramos crédulos a esse ponto, ficaram furibundos: como esses seres inferiores ousam não engolirem nossas mentiras? E, com toda arrogância do mundo, se puseram a pressionar nossas instituições, tomando uma série de atitudes que configuraram claras agressões à soberania brasileira.

Reincidência - Será a segunda tentativa que Gilmar Mendes fará, no sentido de convencer o STF a usurpar essa prerrogativa do Executivo: em 2007, antes de ser conduzido à presidência, ele foi o único ministro a sustentar que o Supremo deveria discutir se os crimes atribuídos a Olivério Medina, ex-integrante das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), eram políticos ou comuns.

Na ocasião, o STF reconheceu que a decisão do governo brasileiro, concedendo o status de refugiado político a Medina, havia sido juridicamente perfeita, pois a lei que regulamenta a concessão do benefício (a 9.474, de 22/0871997, conhecida como Lei do Refúgio) é taxativa: o "reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição".

Mendes agora pedirá aos ministros do STF que voltem atrás no seu entendimento anterior, utilizando apenas o argumento esfarrapado de que, no caso de Medina, o Conare (Conselho Nacional para os Refugiados) foi favorável à concessão do refúgio e agora indeferiu o pedido, em votação dividida (3x2).

Ocorre que o Conare é apenas primeira instância e o ministro da Justiça, a instância definitiva, conforme igualmente estabelece a Lei 9.474:

Art. 12. Compete ao CONARE (...):
I - analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância [grifo meu], da condição de refugiado;

Art. 29. No caso de decisão negativa, esta deverá ser fundamentada na notificação ao solicitante, cabendo direito de recurso ao Ministro de Estado da Justiça [grifo meu], no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificação.

Art. 31. A decisão do Ministro de Estado da Justiça não será passível de recurso [grifo meu], devendo ser notificada ao CONARE, para ciência do solicitante, e ao Departamento de Polícia Federal, para as providências devidas.

A Lei do Refúgio é claríssima, não dando margem a nenhum contorcionismo jurídico que possa compatibilizá-la com a pretensão de Mendes. O que ele quer, em última análise, é alterá-la em essência, o que não é nem nunca será atribuição do STF.

Espera-se que os ministros do Supremo rejeitem mais uma vez o casuísmo proposto por Mendes, evitando mergulhar o País numa crise institucional apenas porque um alto magistrado insiste em impor-lhes sua vontade e confrontar o Executivo.

20.1.09

CASO CESARE BATTISTI: A VITÓRIA DA SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA

Na etapa inicial, a luta em prol de Cesare Battisti foi travada basicamente via internet, ao longo de 2007 e dos primeiros dez meses de 2008, enquanto a grande imprensa a ignorava ou minimizava.

A CartaCapital se destacou negativamente: quando mais difícil era obter apoios para a causa, produziu uma matéria tendenciosa, 100% alinhada com as razões do governo italiano, sem qualquer consideração pelo outro lado.

Ao apresentar Battisti como criminoso comum, afugentou pessoas que, se tivessem um quadro mais completo do caso, tenderiam a simpatizar com sua causa. Reforçou os preconceitos que, desde o compromisso histórico, a esquerda ortodoxa italiana dissemina a respeito dos ultras.

Só as revistas piauí e Caros Amigos concederam ao caso Battisti o destaque merecido nessa fase, dando voz à vítima das perseguições rancorosas do governo Berlusconi.

Mesmo assim, o trabalho infatigável do jornalista Rui Martins ia produzindo seus efeitos na internet, com seus textos sendo reproduzidos por portais e sites jornalísticos, além de disseminados nos circuitos de e-mails.

Em novembro de 2008, o Conselho Nacional para os Refugiados negou por 3x2 o refúgio humanitário para Cesare Battisti. Esta decisão, um cavalo de batalha para os italianos e os brasileiros alinhados com as posições italianas, deve ser relativizada: o ministro Tarso Genro confessou à Folha de S.Paulo ter instruído o secretário-executivo do Conare, Luiz Paulo Barreto, a, ocorrendo empate, dar o voto de minerva contra Cesare ("Não quero que pensem que eu não tenho coragem política e decência moral para decidir um assunto conflituoso como esse", disse o ministro).

Decisão soberana

O certo é que os cidadãos solidários a Cesare Battisti passamos a ver o recurso a Genro como a última chance de evitar-se a extradição do perseguido político italiano. O trabalho de redação de artigos e sua difusão na internet foi intensificado ao máximo, com a minha participação e de Laerte Braga, dentre outros.

Na semana decisiva, uma digna matéria de duas páginas da revista Época apresentou o assunto como se deve, sem viés ideológico, com todos os prós e contras expostos.

Mesmo assim, a consistente decisão de Tarso Genro, justificada de forma impecável num arrazoado de 12 laudas, foi sucedida por um verdadeiro rolo compressor midiático tentando forçar o recuo do governo brasileiro.

A destemperada e arrogante reação italiana foi literalmente encampada por O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e o Jornal Nacional (na sua primeira abordagem do assunto, pois, quando ficou evidenciado o fracasso da articulação reacionária na mídia, voltou à sua habitual postura de bajular governos).

No olho do furacão, Rui Martins, eu e Laerte Braga reagíamos aos enfoques tendenciosos, provando que, pela Lei do Refúgio, Tarso Genro tinha pleno direito de decidir como decidiu; que era justa sua crítica às aberrações jurídicas cometidas pelo Estado italiano contra os ultras, em meio à onda de indignação causada pelo assassinato de Aldo Moro, gerando uma histeria punitiva em que foram atropelados os princípios mais sagrados do Direito; e que as autoridades italianas estavam flagrantemente atingindo a soberania nacional.

Coincidência ou não, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao dar um xeque-mate na questão ("A decisão do Brasil neste episódio é soberana", disse), foi bem na linha sugerida pelo meu artigo do dia anterior, intitulado "Somos um país soberano ou uma república das bananas?", no qual escrevi: "Cabe ao governo Lula colocar as coisas no seu devido lugar, fazendo a Itália entender que não está lidando com uma república das bananas, daquelas que se borram de medo das potências centrais e estão sempre prontas para acatar ultimatos velados". ( http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2009/01/somos-um-pas-soberano-ou-uma-repblica.html )

A posição de Gilmar Mendes

E as boas práticas jornalísticas continuaram sendo olimpicamente ignoradas.

Rui Martins mandou mensagem à Folha de S.Paulo contestando o editorial "Assunto da Itália", principalmente por sua insistência em exigir que o Brasil acatasse sem reflexão alguma as decisões da Justiça de outros países ("Pode haver divisões políticas dentro de um país, porém, por mais agudas que sejam, os contendores não podem recorrer ao argumento de uma superioridade jurídica de um julgamento estrangeiro... Esse ato de sobrepor as leis italianas às nossas seria uma afronta à nossa soberania"). Ignorada.

Eu enviei carta à seção de leitores de O Estado de S.Paulo respondendo ao editorial "Decisão desastrada", que questionei, dentre outros motivos por ter concedido "espaço descomunal" à "choradeira" e às "ameaças italianas", sem, em momento algum, lamentar "as agressões às instituições brasileiras". Ignorada.

Rui Martins lançou uma carta aberta a Mino Carta, chamando-o às falas: "Sua influência como editor da revista CartaCapital poderia ter sido bastante nefasta e significar para um homem, batido pela vida, em nada diferente dos `subversivos´ brasileiros que você tanto entendeu, o retorno à Itália na condição de um condenado a apodrecer na prisão". Mino a colocou como mero comentário no seu blog, não respondeu e depois tirou do ar.

Finalizando, a luta pró-Cesare deixa uma grande lição: a de que, mesmo na contramão da grande imprensa, hoje é possível vencerem-se batalhas políticas a partir da acumulação de forças na internet, preparando o terreno para a entrada em cena dos cidadãos influentes e da mídia convencional no momento decisivo.

E foi evitada a abertura de um precedente odioso, uma verdadeira cunha que o STF de Gilmar Mendes queria fincar na Lei do Refúgio, limitando a acolhida de perseguidos políticos estrangeiros apenas àqueles que não pegaram em armas na defesa de suas causas.

É a mesma posição que ele já manifestou a respeito dos resistentes brasileiros: por piores que tenham sido o extermínio e as atrocidades cometidos pelos usurpadores do poder que governavam sob terrorismo de Estado, Gilmar Mendes nega aos militantes da luta armada o direito de se defenderem. Considera que quem respondeu ao fogo inimigo (em situação de extrema inferioridade de forças!) não passou de criminoso comum.

O Brasil entendeu de maneira diferente.

18.1.09

BALANÇO FINAL DE UMA PEQUENA EPOPÉIA

Só quem já travou uma batalha de opinião -- ainda mais uma dramática como esta em favor do Cesare Battisti -- sabe quão estressante pode ser.

Então, eu e o Rui Martins estamos agora recompondo as forças, ainda meio grogues.

Sucintamente, o balanço final da luta vitoriosa (uma pequena epopéia!) é o seguinte:

1) a campanha de internet teve papel fundamental no êxito obtido, pois foi atraindo o apoio dos formadores de opinião, até que, no momento decisivo, o Tarso Genro e o Lula perceberam que haveria respaldo para a decisão correta, se eles ousassem tomá-la (como acabaram fazendo, num momento em que se colocaram à altura de suas biografias);

2) a grande imprensa se comportou pior ainda do que esperávamos. "O Globo", o "Jornal Nacional" (na primeira matéria, já que depois, percebendo que fracassara o rolo compressor para forçar o recuo do governo brasileiro, entoou outra ladainha...) e "O Estado de S. Paulo" seguiram suas vocações reacionárias. Já a "Folha de S. Paulo" e a "Carta Capital" frustraram todos os que pensavam nelas como exceções no quadro melancólico da submissão canina da mídia aos interesses econômicos dominantes;

3) já a "Época" e a "IstoÉ" honraram as esquecidas tradições da imprensa independente. A primeira reportagem da "Época" veio no momento exato para ajudar a fazer História, no bom sentido;

4) a revista "Piauí" lançou a primeira grande matéria sobre o Cesare, o portal "Brasil de Fato" entrou bem na luta, houve outras honrosas exceções, mas os veículos alternativos e de esquerda, de maneira geral, ficaram devendo, pois poderiam e deveriam ter feito muito mais; e

5) ficou mais uma vez comprovado que, mesmo na contramão da grande imprensa, podemos vencer batalhas políticas a partir da acumulação de forças na Internet, então é hora de passarmos a travar LUTAS CONCRETAS, com objetivos tangíveis, começo, meio e fim, ao invés de utilizar-se a web só para angariar apoio genérico a um Chavez ou reforçar a rejeição genérica a uma Israel.

Por último, orgulho-me muito de ter ajudado a fazer abortar a tramóia do Gilmar Mendes, no sentido de cravar uma cunha na Lei do Refúgio. Quando mandou prender o Cesare Battisti, em março/2007, ele estava querendo limitar a acolhida de perseguidos políticos estrangeiros apenas àqueles que não pegaram em armas na defesa de suas causas.

É a mesma posição que ele já manifestou a respeito dos resistentes brasileiros: por piores que tenham sido o extermínio e as atrocidades cometidos pelos usurpadores do poder que governavam sob terrorismo de estado, o Gilmar Mendes nega aos militantes da luta armada o direito de se defenderem. Considera que quem respondeu ao fogo inimigo (em situação de extrema inferioridade de forças!) não passou de criminoso comum.

O Brasil entendeu de maneira diferente.

14.1.09

DECISÃO HISTÓRICA E SOBERANA: BRASIL CONCEDE REFÚGIO HUMANITÁRIO A CESARE BATTISTI

Numa decisão histórica e soberana, resistindo às fortes pressões do Governo Berlusconi, o ministro da Justiça Tarso Genro concedeu na tarde de ontem (13) refúgio humanitário ao perseguido político Cesare Battisti, que será libertado nesta quarta-feira, após quase 22 meses de prisão. Cesare adquiriu o direito de residir com sua esposa e duas filhas no Brasil, onde deverá continuar exercendo o ofício de escritor.

A decisão de Genro veio ao encontro da avaliação do jurista Dalmo Dallari, segundo quem Battisti foi condenado à prisão perpétua num "julgamento viciado"; e da minha conclusão, expressa em vários artigos nos últimos meses, de que se tratou de "uma verdadeira aberração jurídica", decorrente do "clima de caça às bruxas instalado da Itália a partir da comoção popular que o assassinato de Aldo Moro provocou".

Foi o que Genro afirmou nas justificativas de sua decisão: desafiado pelas organizações armadas de esquerda, "o Estado italiano reagiu (...) não só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando 'exceções' (...) que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da delação premiada, da qual se serviu o principal denunciante" de Battisti.

O ministro considera fundamental que, mesmo em situações de emergência como aquela que a Itália enfrentava, "jamais seja aceita a derrogação dos fundamentos jurídicos que socorrem os direitos humanos".

Não foi o que aconteceu, segundo Genro, que citou um trecho clássico de Norberto Bobbio a respeito dos excessos ali cometidos pelo Estado: “A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (...) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto para detenções preventivas, permitidas (...) por uma duração máxima de dez anos e oito meses".

Tanto quanto o enquadramento de Battisti numa lei promulgada anos depois e que foi aplicada retroativamente contra ele, a hipótese de um cidadão permanecer preso preventivamente durante dez anos e oito meses (!) atesta, de forma eloquente, que se praticavam as mais chocantes aberrações jurídicas na Itália dos anos de chumbo!

O PODER OCULTO E OS PORÕES - E as agressões aos direitos constitucionais dos réus não se limitavam ao recinto dos tribunais, ressaltou o ministro da Justiça: "É público e incontroverso, igualmente, que os mecanismos de funcionamento da exceção operaram, na Itália, também fora das regras da própria excepcionalidade prevista em lei".

Segundo Genro, assim como sucedia "tragicamente" no Brasil de então, também na Itália "ocorreram aqueles momentos da História em que o 'poder oculto' aparece nas sombras e nos porões, e então supera e excede a própria exceção legal", daí resultando "flagrantes ilegitimidades em casos concretos".

As arbitrariedades repercutem até a atualidade, acrescenta o ministro: "Determinadas medidas de exceção adotadas pela Itália nos 'anos de chumbo' (...) ressoam ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios da Anistia Internacional e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes e, de outro, a concessão de asilo político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus".

Genro também rebateu a alegação italiana de que Battisti seria um criminoso comum, não podendo, portanto, beneficiar-se de um direito concedido a perseguidos políticos: "Por motivos políticos o Recorrente [Battisti] envolveu-se em organizações ilegais criminalmente perseguidas no Estado requerente [a Itália]. Por motivos políticos foi abrigado na França e também por motivos políticos, originários de decisão política do Estado Francês, decidiu, mais tarde, voltar a fugir. Enxergou o Recorrente, ainda, razões políticas para os reiterados pedidos de extradição Itália-França, bem como para a concessão da extradição, que, conforme o Recorrente, estariam vinculadas à situação eleitoral francesa. O elemento subjetivo do 'fundado temor de perseguição' necessário para o reconhecimento da condição de refugiado está, portanto, claramente configurado".

Ironicamente, o ministro destacou que as próprias sentenças condenatórias de Battisti comprovam o caráter político dos delitos a ele atribuídos, pois nelas se afirma serem todos esses tipos penais integrantes de “um só projeto criminoso, instigado publicamente para a prática dos crimes de associação subversiva constituída em quadrilha armada, de insurreição armada contra os poderes do Estado, de guerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda no território nacional para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio País”. Mais claro do que isto, impossível.

Finalmente, Tarso frisou que "o contexto em que ocorreram os delitos de homicídio imputados ao recorrente, as condições nas quais se desenrolaram os seus processos, a sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal".

E, como o in dubio pro reo é norma nesses casos, Tarso a seguiu fielmente: "na dúvida, a decisão de reconhecimento deverá inclinar-se a favor do solicitante do refúgio".

13.1.09

O CASO CESARE BATTISTI NA HORA DA VERDADE

O ministro Tarso Genro, da Justiça, deverá anunciar ainda nesta semana se concede ou não refúgio humanitário para o perseguido político italiano Cesare Battisti, que está preso no Brasil desde março/2007, aguardando uma decisão sobre o pedido de extradição apresentado pelo governo Berlusconi e sobre seu próprio pleito no sentido de ser acolhido permanentemente em nosso país.

A decisão desse drama que se prolonga há três décadas pode ser questão de dias, até de horas.

Ao redigir um esclarecimento para os leitores de um portal jornalístico, percebi algo interessante: é humanamente impossível, tanto tempo depois, alguém chegar a uma convicção definitiva sobre os episódios pelos quais Cesare Battisti foi condenado na Itália. Só ele próprio e Deus sabem a verdade.

Mas, se são nebulosas as ocorrências do passado, há algo que qualquer cidadão possuidor de conhecimentos básicos de Direito pode hoje perceber com total clareza: sua condenação foi uma verdadeira aberração jurídica (ou, na expressão mais suave do eminente jurista Dalmo Dallari, "um julgamento viciado").

Tratou-se de uma nefasta consequência do clima de caça às bruxas instalado da Itália a partir da comoção popular que o assassinato de Aldo Moro provocou. Para saciar a sede de vingança dos cidadãos, foram atropelados os direitos constitucionais não só dos integrantes das famosas Brigadas Vermelhas, mas também dos grupúsculos como o Proletários Armados para o Comunismo (no qual Cesare militava).

Se não, vejamos:

1) a condenação de Cesare se deu com base numa lei promulgada anos depois dos episódios em questão e que, portanto, jamais poderia retroagir para abarcar seu caso;

2) não havia provas contra ele, apenas a palavra de um réu que se beneficiou da delação premiada, uma prática extremamente questionável, já que favorece a transferência de responsabilidades de culpados para inocentes;

3) julgaram-no autor de duas mortes sucedidas no mesmo dia, em cidades distantes, sem que fosse levada em conta a impossibilidade física de ele estar presente em ambas;

4) teve escamoteado seu direito de defesa mediante uma farsa já desmascarada por perícia científica (uma carta em branco, assinada, que deixou com um advogado inescrupuloso e à qual foi posteriormente acrescentado um texto falso, para dar a impressão de ele estar ciente da realização do julgamento, quando, na verdade, foi julgado à revelia).

Ninguém, em sã consciência, merece cumprir uma pena de prisão perpétua (ou de 30 anos, por força de uma das condições que o Brasil imporia para conceder sua extradição) sem haver tido um julgamento realmente justo e com pleno direito de defesa.

Se a Itália tivesse pedido a extradição de Cesare para submetê-lo a novo julgamento (em substituição ao que não passou de um linchamento com vaga aparência de legalidade) , até seria aceitável.

Mas, tal possibilidade inexiste. O caso está definitivamente encerrado, não podendo ser reaberto nem mesmo para a apreciação da prova legal agora existente, no sentido de que ele foi vítima de um complô para darem-no como ciente da realização de um julgamento cuja ocorrência ignorava, com o objetivo último de descarregarem sobre ele culpas alheias.

Ademais, a vida tortuosa que Cesare tem levado, caçado pelo mundo desde 1981, chega a ser pior do que uma pena de prisão. Tenha ou não culpas na consciência, passou por uma terrível via crucis, que lhe arruinou os melhores anos da vida.

Então, já passou da hora de o deixarmos cuidar de suas doenças e aproveitar o tempo que lhe resta em paz, escrevendo seus livros e dedicando-se à família.

Mesmo porque as atitudes italianas evidenciam claramente que não se pretende fazer justiça, mas sim exibir a cabeça empalhada de Cesare como troféu, para atestar a onipotência de Silvio Berlusconi.

É o símbolo que a direita européia tem perseguido exaustivamente através de dois continentes. A nós, entretanto, cabe zelar pelo homem, fazendo jus à imagem de brasileiros cordiais que nos granjeia admiração mundial.

Se já acolhemos ladrões como Ronald Biggs e ditadores como Alfredo Stroessner, seria inominável a quebra dessa digna tradição logo agora -- ainda mais para entregarmos às feras um sofredor com toda pinta de inocente, como Cesare Battisti.

Já nos basta o opróbrio de havermos encaminhado Olga Benário para o martírio nos cárceres nazistas. Agora, o caso está nas mãos do ministro de um país democrático, com uma trajetória idealista a honrar. Temos motivos para esperar o melhor.

O espírito de justiça, a solidariedade e a compaixão são os sentimentos mais nobres de um ser humano. Torçamos para que eles inspirem a decisão de Tarso Genro.

10.1.09

FAROESTE NO GUETO DE GAZA

Pasmem: tanto a Câmara dos Representantes quanto o Senado dos EUA aprovaram, por esmagadoras maiorias, resoluções de apoio ao genocídio que Israel está perpetrando no Gueto de Gaza!

Como se fossem autistas, alheios a tudo que câmaras mostram, correspondentes relatam e a ONU deplora (com tanta veemência quanto impotência), os parlamentares estadunidenses atribuem ao Hamas a responsabilidade única por essa versão em miniatura e com sinal trocado do Holocausto.

"Israel, como qualquer outra nação, tem direito à autodefesa quando está sob ataque", disse a presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, omitindo a extrema desigualdade de forças e a adoção da matança generalizada de civis (velhos, mulheres e crianças incluídos) como prática intimidatória por parte do estado judeu.

Então, que fique o resto do mundo ciente: por melhores que sejam as intenções do presidente eleito Barack Obama, pouco ou nada poderá fazer para corrigir as distorções mais aberrantes da política dos EUA. O Congresso não deixará.

De resto, louve-se a coerência dos deputadores e senadores estadunidenses, que mantêm ínalterada sua postura através dos séculos. Avalizaram outrora o extermínio dos indígenas em seu país com a mesmíssima argumentação ora utilizada para avalizar o extermínio dos palestinos.

PITONISA - Embora pareça mais o jornalzinho da Gaviões da Fiel enfocando um Corinthians x Palmeiras, o trecho abaixo é da reportagem "O direito à autodefesa", publicada na edição de 14/01/2009 da revista Veja:

"O que é fora de dúvida é que Israel não pode (e não vai) perder a guerra contra as forças da intolerância religiosa no Oriente Médio, representada agora pelos terroristas do Hamas. Israel é uma sentinela avançada da democracia e da civilização judaico-cristã cercada por nações e grupos políticos armados que formal e claramente lutam pela destruição do estado judeu e pela morte de todos os seus habitantes não-árabes. Também é fora de dúvida que não haverá paz enquanto os vizinhos hostis não aceitarem que a existência de Israel é legítima, que o país tem o direito de se defender e que o terrorismo destrói o que pretende construir."

A confusão é total entre espaços noticiosos e editoriais, bem como entre jornalismo e militância e, enfim, entre análise séria e mera expressão de desejos.

Eu, que não vi em nenhuma bola de cristal se Israel vai ou não perder qualquer guerra, prefiro relatar/comentar os fatos à medida que vão ocorrendo, como aprendi na escola de jornalismo .

BUMERANGUE - O PT comparou a carnificina em Gaza com suas similares históricas, cometidas pelos nazistas. Pelo menos desta vez, está certíssimo.

Que se preparem, entretanto, os petistas para o bumerangue: eles é que serão alvos de uma comparação extremamente vexatória, caso venham a entregar o perseguido político Cesare Battisti para a retaliação (não Justiça) italiana.

O episódio será encarado pela esquerda digna desse nome como repetição do ato indigno de Getúlio Vargas, ao despachar Olga Benário para os cárceres nazistas e a morte.

E a reputação que certos petistas laboriosamente tentam construir, de coerência com os ideais históricos que o partido esqueceu, virará pó no mesmo instante.

7.1.09

WOODSTOCK/40 ANOS: ÉRAMOS CRIANÇAS, BRINCANDO NO PARAÍSO

Faz muito tempo que um ano não começa de forma tão deprimente.

De um lado, a certeza de que 2009 transcorrerá sob recessão e a dúvida sobre se a atual crise cíclica capitalista evoluirá para uma depressão tão terrível como a da década de 1930.

Do outro, a nova demonstração bestial de força de Israel, que reage de forma exageradíssima às agressões sofridas, para transmitir aos inimigos o recado de que massacrará impiedosamente quem se-lhe opuser (mesmo tornando-se genocida aos olhos do mundo e igualando-se aos seus carrascos de outrora, os nazistas).

O baixo astral é tamanho que a imprensa brasileira está esquecendo de registrar que, em 2009, serão comemorados os 40 anos de um dos acontecimentos mais alentadores do século passado: o Festival de Música e Artes de Woodstock.

Foi uma moeda que caiu de pé: os deuses de todos os povos e de todos os tempos parecem ter-se mobilizado para que tudo desse certo durante três dias mágicos, maravilhosos, que seriam para sempre lembrados como uma amostra da perfeição possível neste sofrido planeta.

Sem favor nenhum, posso afirmar que Woodstock foi o evento musical que mais influenciou as artes e os costumes na história da humanidade. E a conjunção de fatores que o transformou em marco e lenda dificilmente se repetirá. Sorry, moçada de hoje, mas o Gilberto Gil é que estava certo: "quem não dormiu no sleeping bag/ nem sequer sonhou".

Para começar, o Festival de Woodstock foi o ponto de chegada e a culminância de vários fenômenos e acontecimentos marcantes.

A escalada norte-americana no Vietnã, ao longo da década de 60, engendrara um movimento pacifista de crescente influência entre os jovens dos EUA, com direito a manifestações de protesto, queimas de cartas de recrutamento, choques com a polícia e a uma manifestação-monstro de cerco ao Pentágono.

Em 1965, um estudante de química chamado Owsley Stanley aprendeu como fabricar ácido lisérgico no porão de sua casa e logo inundou San Francisco com o LSD, impulsionando o surgimento da geração das flores, imortalizada pela bela canção de Scott McKenzie: “Se você vier para San Francisco,/ não se esqueça de colocar/ algumas flores no seu cabelo...”

Foi aí que o movimento hippie nasceu, aglutinando jovens que recusavam o american way of life e caíam na estrada, em busca de aventuras e novas experiências.

Em termos mais profundos, pode-se lembrar que era a fase em que a crescente mecanização da indústria mais e mais dispensava o uso da força física, demolindo algumas vigas-mestras da sociedade norte-americana, toda ela construída em cima do ascetismo puritano (a negação do prazer a fim de poupar energias para o trabalho). Na década de 60, o prazer reconquistava suas prerrogativas.

Grandes festivais de rock já haviam ocorrido em Monterey (1967) e na Ilha de Wight. Este último vinha se realizando desde 1968, embora o mais marcante e lembrado seja o de 1970, quando se deu uma das últimas apresentações de Jimi Hendrix.

Quanto a públicos expressivos, também não eram novidade: o festival inglês já reunira 250 mil pessoas.

Mas, foi no de Woodstock que a indústria cultural investiu pesado, pela primeira vez. É que, com algum atraso, os mercadores das artes se deram conta de que tinham um diamante bruto ao alcance das mãos. Prepararam-se, então, para explorar em grande estilo o evento seguinte.

Por último, vale notar que ainda se vivia a época dos compactos, em que eram singles e não elepês que corriam o mundo, com a repercussão dependendo, principalmente, da divulgação nas rádios.

Pouco se conhecia da segunda onda do rock (a primeira, nos anos 50, fora a dos pioneiros Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley, etc.).

Muitos garotos, como eu, amavam os Beatles e os Rolling Stones. De resto, haviam escutado. “The House of Rising Sun” (Animals), “Sunny” (Johnny Rivers), “A Wither Shade of Pale” (Procol Harum) e quase nada mais.

Existia uma produção musical de grande qualidade represada, não atingindo circuitos mais amplos. Seria a irrupção dessa nova geração de importantes artistas ainda relativamente desconhecidos que asseguraria a surpresa e o enorme impacto causados pelo filme Woodstock e pelo álbum triplo com registros desse evento.

BRINCANDO NA CHUVA – Foram três dias de “paz, música e amor”, de 15 a 17 de agosto de 1969, levando 450 mil jovens até a fazenda do leiteiro Max Yasgur, a 80 quilômetros de Woodstock, estado de Nova York.

Logo no primeiro dia o festival foi declarado livre: quem não tinha comprado antecipadamente o ingresso, não precisou mais fazê-lo. Com isto, os promotores tiveram US$ 100 mil de prejuízo inicial, mas acabaram saindo no lucro: o filme lhes proporcionaria um retorno imediato de US$ 17 milhões.

O torrencial aguaceiro do segundo dia foi tirado de letra pela moçada, que aproveitou para relembrar a infância, chapinhando na lama. De início se tentou afastar a chuva com a força do pensamento positivo, todo mundo gritando “No rain! No rain!”. Depois, o jeito foi se amoldar a ela, brincando de tobogã e cantando. No álbum Woodstock há dois registros disto: no disco I, o improvisado “canto da chuva”; e no II, a multidão entoando em coro o refrão “deixa o sol brilhar!”, da peça Hair.

As boas vibrações não impediram a ocorrência de três mortes: uma overdose, um atropelamento por trator e um ataque de apendicite. O guitarrista e líder do The Who, Peter Townshend, não se limitou, como de hábito, a destruir o instrumento de trabalho no final apocalíptico de sua performance; levou a fúria para os bastidores, quebrando o pau com o líder hippie Abbie Hoffman.

O evento foi processado para o cinema por Michael Wadleigh, que fez uma magnífica edição de imagens e introduziu uma novidade: a bi ou tripartição da tela, oferecendo ao espectador tomadas simultâneas do mesmo grupo, de artistas isoladamente, do público, etc.

Há, além disto, nítido empenho em situar o evento sociologicamente, ao contrário do documentário sobre o Festival de Monterey, que se ateve quase exclusivamente à música. Daí a merecida reputação de Woodstock como o filme que inovou a arte de registrar espetáculos musicais.

NEM TUDO FOI MOSTRADO – Muitos artistas deixaram de ter um número exibido no filme e no álbum triplo. Ficaram de fora Melanie, Mountain e Butterfield Blues Band, com o consolo de aparecerem no segundo álbum Woodstock, duplo, que foi lançado algum tempo depois. O Jefferson Airplane não está no filme, mas sua “Volunteers” consta do álbum triplo e teve mais canções aproveitadas no álbum duplo.

A relação dos que lá estiveram mas ficaram de fora tanto do filme quanto dos álbuns é extensa: Janis Joplin, Grateful Dead, The Band, Blood Sweat & Tears, Creedence Clearwater Revival, Incredible String Band, Johnny Winter e Ravi Shankar. Motivo: problemas contratuais.

[Agora, na onda do MP-3, tudo isso foi finalmente disponibilizado para os saudosistas dos velhos e bons tempos, bem como para os jovens que querem saber saber como era o som que os pais, tios e avós curtiram...]

Os cachês mais altos foram os de Jimi Hendrix (US$ 18 mil), Blood Sweat & Tears (US$ 15 mil), Joan Baez e Creedence Clearwater Revival (US$ 10 mil cada). Santana exibiu sua empolgante fusão de rock e sonoridades latinas, “Soul Sacrifice”, pela bagatela de 750 dólares.

O trovador John Sebastian tirou a sorte grande: não foi convidado, mas apareceu para dar uma olhada e acabou subindo ao palco quando a chuva recém-finda impedia a apresentação de bandas eletrificadas. Ganhou direito a constar do filme e do disco, além de receber mil dólares.

O Crosby, Stills, Nash & Young, que acabava de ser constituído, cativou a platéia com seu folk-rock contestador e obteve êxito instantâneo, lançando as bases da longa carreira de seus integrantes (pouco tempo como quarteto e muito mais como artistas-solo).

No extremo oposto, o Ten Years After foi a principal vítima da síndrome de Woodstock: nunca igualou os 11 esfuziantes minutos de “Goin’ Home”, que valeram para Alvin Lee a reputação de grande guitarrista.

Outra curiosidade: foi marcante a aparição de Arlo Guthrie (“Comin’ Into Los Angeles”), cuja trajetória acabaria sendo eclipsada pela de Bob Dylan. Os estilos vocais e temáticos eram semelhantes, tendo Dylan sido mais eficiente em afirmar-se como herdeiro da arte e da lenda de Woody Guthrie, o precursor dos mochileiros. Correndo na mesma faixa, ele sobrepujou o próprio filho de Woody.

A vertente negra do rock se destacou em duas performances memoráveis. Richie Havens, um talento que depois definharia, arrepiou a platéia com seu camisolão africano e a interpretação fulgurante de “Freedom”. E Jimi Hendrix, no auge de sua genialidade, puniu simbolicamente os militaristas com a implosão do hino nacional norte-americano.

Isto para não falar do herdeiro branco e britânico de Ray Charles, o chapadíssimo Joe Cocker, com sua voz poderosa e postura bizarra, sacudindo o corpo para a frente e para trás como um boneco de mola enquanto as mãos dedilhavam sem parar uma guitarra inexistente.

O rock erudito, que marcaria toda uma época, também se fez presente em Woodstock: o The Who interpretou uma compilação de faixas da ópera-rock Tommy, projetando mundialmente essa sua (para a época) extravagância: um álbum-duplo que, faixa a faixa, vai contando a história de um menino que flagra o adultério da mãe e o assassinato do pai, recebendo então a ordem de apagar aquele episódio da mente e nunca relatá-lo a ninguém. O trauma o torna cego, surdo e mudo, mas ele acaba se libertando e atingindo a iluminação.

SÍNTESE DA CONTRACULTURA – Com Woodstock ganhou repercussão ampla o movimento de paz e amor que fermentava na boêmia San Francisco desde meados daquela década, como um desdobramento lisérgico e roqueiro do antigo movimento beatnik.

Suas características externas são ressaltadas no filme:
* o amor livre e a desinibição corporal, com o nudismo sendo amplamente praticado, de forma inocente e até singela;
* a convivência harmoniosa, sem nenhum resquício de preconceito, entre indivíduos de todas as raças, credos e orientações sexuais;
* o consumo explícito e justificado (por alguns entrevistados, como Jerry Garcia) das drogas que, no entender daquela geração, abriam as “portas da percepção”;
* o visual premeditadamente desarrumado do pessoal, com suas roupas coloridas, ponchos e cabeleiras imponentes;
* a substituição dos laços familiares por uma comunidade grupal (ou, como se dizia então, tribal);
* a volta à natureza e a redescoberta do lúdico (em vários momentos, vêem-se marmanjos entregues a brincadeiras pueris, sem nenhum constrangimento);
* a profusão de crianças, pois os hippies mandavam às favas o planejamento familiar, os anticoncepcionais e os abortos, assumindo plenamente o amor e suas conseqüências;
* o solene desprezo pelas regras e valores dominantes na sociedade, que se evidencia até nas falas dos organizadores do festival, não ligando a mínima para os prejuízos que estavam ameaçados de sofrer.

De certa forma, este comportamento era inspirado por teóricos como Reich, Marcuse e Norman O. Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada não só pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes (visão da esquerda convencional), como também pelos condicionamentos que embotavam a imaginação e inibiam o desfrute pleno da sexualidade.

Essas teses inspiraram uma nova voga anarquista, que pregava o combate ao stablishment também no íntimo de cada pessoa. As drogas serviriam para o resgate de faculdades esquecidas devido ao desuso; e a liberalidade sexual, incluindo as práticas antes estigmatizadas como perversões (homossexualismo, sodomia, sexo oral, masturbação), seria a premissa de uma visão erótica do mundo, em substituição ao princípio da realidade freudiano.

BRASIL: COMUNIDADES E BICHOS-GRILOS – A influência de Woodstock em nosso país pode ser detectada na música (Raul Seixas, Made in Brazil, a última fase dos Mutantes), no teatro (Oficina, Tuca), na cinematografia (o chamado cinema marginal) e, sobretudo, nos costumes, com os bichos-grilos que percorriam as estradas como caronas, indo e vindo à meca de Arembepe (BA), além de criarem comunidades urbanas e rurais onde exercitavam um estilo alternativo de vida.

Essas tentativas, entretanto, esbarraram no ambiente repressivo dos anos de chumbo, o que levou, p. ex., a ser expulso do Brasil o elenco do Living Theatre de Julian Back, que supôs encontrar aqui seu paraíso tropical; e, em termos mais amplos, na própria impossibilidade de contingentes mais amplos, num país pobre como o nosso, garantirem indefinidamente seu sustento com artesanato, aulas de ioga e que tais.

A grande vitória da Geração Woodstock foi ter conseguido arrancar os Estados Unidos do Vietnã. E seu exemplo repercute até hoje no ativismo em defesa do meio ambiente e a favor de algumas causas justas.

Além disto, ela entronizou a imagem do jovem como centro do universo do consumo, em substituição ao modelo rígido do pai de família, daí derivando a descontração no vestir, no falar e no comportamento.

E ainda lançou alguns modismos que hoje estão em menor evidência, como o ioga, a macrobiótica, o ocultismo e a agricultura natural (sem defensivos e fertilizantes).

Não perduraria, entretanto, aquela militância política idealista e generosa: as gerações seguintes se desinteressaram de mudar o mundo, voltando a priorizar a ascensão profissional e social. O rock, depois de uma fase intensamente criativa e experimental, voltou aos caminhos seguros do marketing.

As drogas, ao invés de abrirem as portas da percepção, se tornaram instrumentos para a fuga à realidade e a ilusão de onipotência, cada vez mais pesadas, até que se chegou ao pesadelo do crack. E o amor livre degenerou em sexo casual, promiscuidade e AIDS.

O sonho acabou? Talvez. Mas, quem o partilhou só lamenta que haja durado tão pouco e tenha sido substituído por uma realidade tão insossa.

Eu prefiro mesmo é a postura do inesquecível Raulzito: ele nunca deixou de acreditar que a roda da fortuna giraria de novo, trazendo de volta, desta vez para ficar, o "paraíso-agora" que iluminou nossas vidas por um fugaz instante... e, mesmo assim, marcou-nos para sempre.

Oh, baby, a gente ainda nem começou!

5.1.09

DE VOLTA À BATALHA, SONHANDO COM A PAZ

Passei quatro dias na aprazível Lindóia (SP), com as pessoas que mais amo no mundo, minha companheira e as duas filhas: a que vive comigo e tem oito meses; e a que mora distante e tem quase sete anos.

Por medida de economia, infelizmente necessária, ficamos num hotel-fazenda, que oferece paisagem de cartão postal mas tem o inconveniente de não disponibilizar internet. Absorvido pelos programas familiares, acabei permanecendo cinco dias desconectado do insensato mundo.

O contato com as pessoas simples e a rotina amena da região entre SP e MG reavivou em mim aquele velho sonho dos guerreiros cansados, magnificamente expresso na canção Toada Brasileira, de Ivor Lancelotti e Paulo César Pinheiro.

De volta à cidade grande onde, dizem os versos igualmente inspirados de Alceu Valença, "tudo corre tão depressa que, se você tropeça, não vai levantar", restou-me um tanto de melancolia. Até quando teremos de nos ocupar de atrocidades e horrores como os da campanha israelense na faixa de Gaza, quando poderíamos estar desfrutando a vida em harmonia e com fraternidade?

Como é pouco conhecida, vale a pena registrar aqui a letra de Toada Brasileira, de cristalina beleza e um humanismo que faz imensa falta nos tristes tempos presentes:

Eu fiz com meu trabalho
A vida inteira
Uma casinha branca no sertão
De frente prum caminho de palmeira
Do lado de nascente e ribeirão
De dia o galo canta na porteira
E a passarada vem comer na mão
E à sombra de uma jabuticabeira
Passo a manhã contando uma canção

No almoço uma caninha costumeira
Vem do fogão de lenha um cheiro bom
Eu como uma comidinha mineira
Pra cochilar sob o caramanchão
No fim da tarde um banho na ribeira
Deitar na rede e olhar pra essa amplidão
A estrela Dalva é a estrela primeira
E o canto da cigarra é a saudação

De noite vem o perfume da roseira
E a lua tece rendas no portão
Eu tenho a paz com minha companheira
Mas muita mágoa no meu coração
Por que não ser assim com a Terra inteira
Por que uns conseguem e outros não?
Eu canto uma toada brasileira
Pedindo um mundo
Assim pros meus irmãos
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