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31.7.09

A CRISE CAPITALISTA E A IMPOTÊNCIA DOS GOVERNOS

Desempregados na fila da sopa, durante a Grande Depressão.

O filósofo francês Luc Ferry é um pensador estimulante. Chama-nos a atenção para fenômenos que estavam nos passando despercebidos e ousa questionar o chamado politicamente correto.

P. ex.: devemos, em nome do respeito às tradições de outros povos, concordar com a utilização da burca pelas mulheres de religião muçulmana? Ferry, quando ministro da Educação, a proibiu nas escolas francesas. E justifica:
"...a burca (...) não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos".
Entrevistado pela Folha de S. Paulo (ver aqui), Ferry foi muito feliz ao discorrer sobre a crise global do capitalismo, vindo ao encontro de algumas posições por mim defendidas. Se não, vejamos:
"Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma 'boa economia', a economia 'real' e uma economia 'ruim', a economia especulativa, não resiste à análise.

"Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam.

"Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos 'subprimes'. A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco.

"Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura.

"É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real".
Desde o primeiro momento afirmei que se tratava da versão modernizada das crises cíclicas do capitalismo, tão bem dissecadas outrora pelos pensadores marxistas. Hoje elas podem ser represadas por mais tempo, mas não eliminadas.

Continua existindo a velha contradição entre o total de produtos oferecidos ao consumo e o poder aquisitivo dos consumidores, já que estes não recebem, como remuneração por seu trabalho, o exato valor dos bens que produziram. A velha mais-valia, enfim.

Ora, a margem de manobra do capital é hoje muito maior. Ele cria consumidores, ao conceder-lhes crédito praticamente ilimitado. Mas, claro, o elástico estica, estica, até que um dia arrebenta.

Aí, a indústria cultural vende a idéia que o capitalismo produtivo é bom e o capitalismo especulativo é ruim. Papo furado. O médico e o monstro são a mesmíssima pessoa, como no clássico de Robert Louis Stevenson.

Tal contradição é impossível de ser resolvida nos quadros do capitalismo: trata-se do sistema econômico alicerçado sobre a existência da mais-valia, quer ela se apresente com a clareza cristalina dos tempos de Marx, quer dissimulada pelos jogos de espelhos da sociedade atual.

Então, depois que o mundo inteiro pagar o preço da irracionalidade capitalista nesta crise, novos mecanismos reguladores serão instituídos para disciplinar o mercado financeiro e a indústria cultural venderá a ilusão de que Mr. Hyde nunca mais dará as caras. Foi o que aconteceu depois do crash de 1929 e da década inteira de depressão subsequente.

Ora, todos aqueles erros que nunca mais seriam cometidos, o foram novamente na atualidade. E, se não nos livrarmos do capitalismo, o Dr. Jekyll voltará a virar monstro daqui a umas tantas décadas. É simples assim.

PODER POLÍTICO x PODER ECONÔMICO

Na entrevista hoje publicada, Ferry veio ao encontro de outra tese que eu e muitos esposamos: a de que o poder Executivo é hoje satelizado pelo capitalismo globalizado e não serve como ferramenta para mudarmos a sociedade num sentido anticapitalista:
"No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra.

"[Um grande desafio é] resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico".
Trocando em miúdos: os governos são impotentes para impedirem que o capitalismo continue gerando depressões econômicas e desastres ecológicos cada vez piores.

E, acrescento eu, continuarão sendo-o até que a humanidade morra abraçada com o capitalismo.

A alternativa é os cidadãos comuns, independentemente dos governos, agindo em nome da sobrevivência da nossa espécie, tomarem seu destino nas mãos, construindo uma economia baseada no atendimento das necessidades humanas e na convivência harmoniosa com o meio ambiente.

Mas, terão de fazer isto logo, antes que os danos causados pela componente destrutiva do capitalismo ultrapassem o ponto de não-retorno.

21.7.09

TEMPO DE INCOERÊNCIA

"A verdade é revolucionária", afirmou Rosa Luxemburgo.

Há um mês recebi esta mensagem do valoroso companheiro Luiz Aparecido ("ex-preso politico e até hoje militante do glorioso PCdoB", como faz questão de ressaltar):
"Acabei de assistir hoje, domingo, dia 21 de junho de 2009, no Canal Brasil da SKY e repetido por outros canais de assinatura, o documentario, 'Tempo de Resistencia', onde inumeros revolucionarios dão seu depoimento sobre a resistencia dos combatentes brasileiros à Ditadura. Entre os depoimentos sinceros e emocionantes (...) há tambem o de Darci Rodrigues. Este ultimo me chocou ao repetir a cantilena mentirosa e falsa, de que o campo de treinamento da guerrilha da VPR, no Vale do Ribeira no inicio dos anos 70, no interior de São Paulo, foi entregue pelo quem ele chama de traidor, Celso Lungaretti.

"É mais que a hora, de exigir dos produtores e diretores do documentario que façam, em nome da verdade histórica, o esclarecimento que historiadores como Jacob Gorender e a própria vida ja fizeram: Celso Lungaretti não foi o delator que entregou o local do treinamento para a repressão. Como esta informação se tornou publica e abrange, atraves do documentario exibido no 'Canal Brasil' e outros veiculos, fórum de seriedade histórica, é necessário mais uma vez isentar o Lungaretti desta perfidia e se for o caso, até entrevistarem o Celso e outros companheiros da época, para apontar o verdadeiro delator daquele fato.

"As torturas barbaras e humilhantes que nós revolucionarios fomos submetidos nos porões da ditadura, devem ser denunciadas sempre, assim como a verdade dos fatos que elas originaram. Se alguns e não foram poucos, fraquejaram e abriram companheiros e ações, os fatos devem ser esclarecidos. Mas uma mentira não pode destruir a reputação, a honra, a vida e a coragem de quem teve a audacia e o desprendimento humano de enfrentar, armados ou não, o aparato selvagem da ditadura.

"Dou meu depoimento publico da honestidade e coragem histórica de Celso Lungaretti...".
Passei exato um mês esperando que os responsáveis pela acusação, a partir dos e-mails que lhes enviei, dessem uma solução digna ao episódio. Como nada fizeram, só me resta tornar público o que houve, deixando aos leitores as conclusões.

Preso em instalações militares e impossibilitado de me defender, fui em 1970 acusado pela Vanguarda Popular Revolucionária de haver delatado a área na região de Registro (SP) em que Carlos Lamarca e outros militantes treinavam guerrilha. A repressão deslocou milhares de soldados para lá, mas alguns companheiros escaparam como civis, outros embrenhando-se nas matas. A fuga destes últimos, comandada por Lamarca, foi, indiscutivelmente, uma das maiores proezas militares da História brasileira.

Quando fui libertado, nada havia mais a fazer. A falsidade passava por verdade e eu não tinha como conseguir provas para sustentar minha versão, nem tribunas para apresentá-la, em meio à censura e à intimidação reinantes.

Quando a engrenagem de terrorismo de estado começava a ser desmontada, fui entrevistado por veículos como a revista IstoÉ e o jornal Zero Hora (RS), relatando, então, as torturas sofridas durante os dois meses e meio que passei incomunicável nos cárceres da ditadura e que me causaram uma lesão permanente.

Mas, o foco dessas reportagens não era o episódio de Registro e, como eu ainda não conseguira nenhuma prova de minha inocência, não insisti para que delas constasse minha refutação.

Em 1984, no entanto, Marcelo Paiva fez-me tal acusação nas páginas da Folha de S. Paulo e eu não poderia deixar de exigir direito de resposta. Travamos polêmica e eu expus pormenorizadamente o que eu realmente fizera e os fatos de que tinha conhecimento.

Ainda sem provas, era minha versão bem sincera do que se passara:
  • participei da equipe precursora que foi implantar uma escola de guerrilhas à altura do km. 254 da BR-116;
  • a área foi considerada inadequada e abandonada em dezembro/1969;
  • voltei para o trabalho urbano exatamente por desconhecer a localização da área seguinte, na qual o trabalho prosseguiu (caso contrário, por motivos de segurança, não poderia ter saído de lá);
  • ao contrário do que o Lamarca me fez crer, a área 2 não se localizava a centenas de quilômetros de distância, mas apenas a 16;
  • em abril/1970, ao ser preso e muito torturado, revelei a localização da área 1, por avaliar que seria informação inútil para a repressão, mas serviria para eu me recompor e ganhar tempo, enquanto preserva informações realmente importantes;
  • talvez, como Marcelo Paiva sustentou, a partir dessa área 1 tivessem descoberto alguma ligação com a área 2, mas a responsabilidade, aí, seria de erro cometido pela própria VPR na instalação dos campos.
Em 2004, a prova que tanto me fazia falta finalmente caiu nas minhas mãos, quando Ivan Seixas, em seu site Resgate Histórico, publicou um relatório secreto de operações do II Exército, cuja existência eu desconhecia.

Dele constava, explicitamente, a informação de que duas equipes do DOI-Codi foram deslocadas para Registro a fim de apurar minha informação sobre a área 1 e voltaram relatando que não havia mais atividades no local; enquanto isso, novas informações, decorrentes de prisões posteriores, forneceram à repressão a localização exata da área 2.

Estava tudo lá, preto no branco. Meu próprio temor de haver contribuído indiretamente para a descoberta da área 2 era infundado. A coisa se passara de outra maneira, felizmente para mim.

Enviei os textos de minha polêmica com Marcelo Paiva e a cópia desse relatório para alguns historiadores. Jacob Gorender, com sua dignidade exemplar, assumiu a responsabilidade de esclarecer o episódio, a partir desse material e de outros documentos sigilosos que informou possuir.

Duas semanas depois, enviou carta à Folha de S. Paulo e a O Estado de S. Paulo, comunicando:
"Na primeira edição do meu livro 'Combate nas Trevas' (...) escrevi (...) que Celso Lungaretti forneceu ao Exército a primeira informação sobre um campo de treinamento de guerrilheiros da VPR em Jacupiranga, no vale do Ribeira. (...) Não obstante, no mês corrente, Celso Lungaretti contatou-me, por via telefônica, para chamar a minha atenção para o fato de que dera a aludida informação sob tortura e sabendo que o campo de treinamento onde estivera se encontrava desativado havia dois meses. O relatório do comandante do 2º Exército na época, general José Canavarro Pereira, co-assinado pelo general Ernani Ayrosa da Silva, sobre a Operação Registro (localidade do vale do Ribeira), confirma que, efetivamente, aquele campo de treinamento fora desativado. Sucede, no entanto, que, quase simultaneamente, chegaram ao 2º Exército informações procedentes do 1º Exército, com sede no Rio de Janeiro, de que um novo campo de treinamento de guerrilheiros, adjacente ao anterior, se encontrava em atividade. (...) A respeito dessa segunda área, nenhuma responsabilidade cabe a Celso Lungaretti, que ignorava a sua existência. Sua vinculação com o episódio restringiu-se, por conseguinte, à informação sobre a área que sabia desativada, fornecida, segundo afirma, sob tortura irresistível."
A publicação desta carta do Gorender na Folha de S. Paulo (ver aqui) abriu caminho para o lançamento do meu livro Náufrago da Utopia
(ver aqui). Eu considerei acertadas minhas contas com a História e passei priorizar as lutas presentes, ao invés de ficar remoendo o passado.

Aí foi lançado o documentário Tempo de Resistência, com a insólita acusação do ex-companheiro Darcy Rodrigues. Em meados da década atual, ninguém sequer cogitava traição da minha parte. Torturado com relatórios médicos e lesão para apresentar não pode ser confundido com os cabos Anselmos da vida.

Mandei mensagem ao autor do livro que serviu de base para o filme, Leopoldo Paulino ( leopoldo@leopoldopaulino.com.br ), esclarecendo não só que a acusação era infundada, como que Darcy Rodrigues tinha um motivo pessoal, não político, para fazê-la, sendo que a desavença entre nós dois era conhecida e constava até de livro de um jornalista sobre o período.

Leopoldo Paulino nada respondeu. E, como o documentário teve pouca repercussão nos cinemas, acabei deixando pra lá.

Sua exibição na TV a cabo, entretanto, está atingindo público mais amplo. Então, voltei a protestar, pedindo-lhe que fizesse algum tipo de retificação ou esclarecimento.

Também contatei o cineasta André Ristum ( andreristum@yahoo.com ), diretor do filme, que respondeu:
"Para a realização deste documentário eu e minha empresa fomos contratados pelo Leopoldo Paulino, para executar a obra baseada em seu livro.

"Assim, conforme contrato assinado entre nós, o responsável pelo conteúdo, seja do ponto de vista das informações passadas seja do ponto de vista legal, é o próprio Leopoldo Paulino.

"Eu, até pela minha pouca idade, não poderia jamais me responsabilizar por informações a respeito de uma época que não vivi e pouco conheço.

"Peço então que se comunique diretamente com o Leopoldo, ou com o Darcy...".
Mas, em entrevista posterior à que concedeu para o filme (ver aqui), o próprio Darcy deixou de sustentar a antiga acusação:
"[Darcy] Discorre também sobre o erro de haver levado para o campo pessoas, que não estavam totalmente convencidas dessa necessidade e de outras, que não tinham conhecimento completo da organização. Cita um caso: 'Celso Lungaretti foi para a primeira área, não se deu bem, voltou para a cidade E NEM CONHECEU A SEGUNDA' [grifo meu]."
Em respeito à trajetória de luta do Darcy, optei por considerar suficiente este seu reconhecimento da minha inocência. Melhor passarmos uma borracha em acontecimentos tão distantes quanto deprimentes.

Quanto a Paulino, falhou como revolucionário, pois foi duas vezes alertado de que cometia uma injustiça contra outro revolucionário e em ambas se omitiu: nem corrigiu seu erro, nem sustentou sua posição. Apenas calou.

E falhou como escritor que pretende historiar a resistência, já que não teve a mínima preocupação prévia de ouvir quem sofria grave acusação, nem se dispôs a apresentar o outro lado quando isto lhe foi depois formalmente solicitado.

Segundo um jurista que me-é solidário, caberiam três providências legais neste caso, que poderiam até ser tomadas simultaneamente:
  1. "a formalização de um pedido de direito de resposta ao Canal Brasil, que foi o veículo pelo qual esta afronta à sua imagem foi desferida";
  2. "o pedido judicial para que este documentário seja editado, sob pena de sua execução em território nacional ser proibida, com cominação de multa caso a ordem venha a ser descumprida";
  3. "o pedido de reparação por danos morais, contra os produtores do documentário e o próprio difamador, já que tal veiculação já está lhe causando problemas e constrangimentos".
Mas, depois de haver lutado tanto por uma noção mais elevada de Justiça, estaria faltando com meus princípios se recorresse a uma instância do Estado que execro, contra outro ex-militante da resistência.

É no tribunal das consciências que tais atitudes devem ser julgadas. Então, preferi apenas expor os fatos, para que cada leitor tire suas conclusões e, se quiser, tome alguma atitude.

14.7.09

SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA: AINDA EXISTE?

Atendendo a pedido do poeta, jornalista e militante revolucionário Rubens Lemos (foto), fui porta-voz da greve de fome do seu filho Marcos Wilson em 1986.

Pouco há de novo, para mim, na luta que estou travando no sentido de evitar a extradição do companheiro Cesare Battisti e garantir-lhe o direito de viver em liberdade no Brasil.

Há exatos 23 anos vivi situações semelhantes, quando militantes nordestinos estavam em greve de fome e tive de fazer esforços desesperados para conseguir repercussão na imprensa, fundamental para sensibilizar-se as autoridades.

Daquela vez a esquerda foi mais omissa ainda do que agora, se é que isto serve de consolo.

Mesmo assim, ainda não consegui me habituar à constatação de que a maioria dos sites e portais ditos progressistas concede espaços incomensuravelmente maiores aos assuntos rotineiros do que ao exercício da solidariedade revolucionária.

O certo é que, pelos procedimentos adotados em todos os casos anteriores de concessão de refúgio humanitário, a decisão favorável do ministro da Justiça Tarso Genro seria o suficiente para a libertação de Battisti.

Se o Supremo Tribunal Federal entende que deva colocar em questão a Lei do Refúgio e a jurisprudência que ele próprio firmou com suas decisões anteriores, o mínimo de isenção determinaria que, pelo menos, pusesse o escritor italiano em liberdade provisória até apreciar o caso (o que está prometendo fazer, sem cumprir, há cinco meses...).

O inaceitável é que permaneça este quadro kafkiano, com Battisti preso desde março/2007 por crimes de que foi acusado alhures, não tendo sido libertado nem mesmo depois de o Governo brasileiro conceder-lhe refúgio, sem que a esquerda desenvolva todos os esforços a seu alcance para corrigir esta situação verdadeiramente aberrante.

Se depender dos companheiros muy amigos, Cesare está f... e malpago.

MILITANTES ABANDONADOS ÀS FERAS EM 1986

Quando montou sua peça sobre Zumbi, o bravo Teatro de Arena colocou logo no tema de introdução que se tratava de uma
"História da gente negra, da luta pela razão
Que se parece ao presente, pela verdade em questão
Pois se trata de uma luta muito linda, na verdade
É luta que vence os tempos, luta pela liberdade"
Como o episódio de Salvador/1986 também "se parece ao presente, pela verdade em questão", vale a pena evocá-lo aqui, reproduzindo trechos da narrativa que fiz em Náufrago da Utopia (Geração Editorial, 2005), que, até onde sei, é o único livro que registrou tal acontecimento.

Como escrevi boa parte do Náufrago na 3ª pessoa, refiro-me a mim pelo pseudônimo que então utilizava nos textos jornalísticos, para driblar a censura do regime militar: André Mauro.

Sem mais delongas, vamos ao que interessa:
"Final de 1986. André chega atrasado para a reunião da Cacimba, numa tarde de sábado. O grupo literário se distribui por cadeiras e pelo chão do quarto. A palavra está com um visitante ilustre: Rubens Lemos, jornalista, poeta e velho militante comunista. André cumprimenta a todos, pede desculpa pelo atraso e se acomoda. Rubens continua expondo o problema que o trouxe a São Paulo.

"Seu filho e três outros companheiros foram presos ao assaltarem um banco na capital baiana, alguns meses atrás. Dinheiro para a revolução, uma prática que já parecia extinta. Por serem todos petistas, a imprensa fez estardalhaço. E o partido, temendo que esse fato fosse explorado na campanha eleitoral, voltou as costas aos chamados quatro de Salvador.

"O PT está obsessivamente empenhado em livrar-se da imagem de reduto dos antigos terroristas.

"Na primeira eleição de que participou, em 1982, a lei eleitoral só permitia a exibição, no horário gratuito da TV, do currículo e foto de cada candidato. Os aspirantes petistas a deputados eram quase todos originários da resistência à ditadura — e orgulhavam-se disso, fazendo questão de destacar a condição de ex-presos políticos.

"A direita, por sua vez, aproveitou ao máximo para insuflar preconceitos. Colocava em circulação piadas tipo “os candidatos do PT não estão mostrando currículos, mas sim folhas corridas e boletins de ocorrência”...

"Então, na eleição de 1986, o que o partido mais queria era dar a volta por cima, projetando uma imagem de respeitabilidade. Quando a prisão dos quatro de Salvador ameaçou relacionar o PT com as expropriações outrora praticadas pela vanguarda armada, foi um deus-nos-acuda!

"Além de negar qualquer apoio a esses militantes, a tendência majoritária começou a reprimir e expurgar as correntes radicais abrigadas em suas fileiras. Pertencer simultaneamente à Articulação e ao PT continuou in, mas ser da Convergência Socialista e do PT virou out. Porta da rua é serventia da casa.

"Os quatro párias ficaram numa situação extremamente vulnerável — e os policiais, contrários à redemocratização do País, não desperdiçaram a chance. Agentes da Polícia Federal começaram a levá-los a outros Estados, sem mandado judicial nem comunicação a seus advogados, para serem mostrados a testemunhas de todos os assaltos a bancos ocorridos em passado recente.

"Nem mesmo a Ordem dos Advogados do Brasil obtinha permissão para dar assistência aos prisioneiros nessas praças e acompanhar os reconhecimentos. Havia uma intenção óbvia de inculpá-los de tantos delitos quanto fosse possível.

"A gota d’água foi o telefonema recebido por Rubens Lemos na rádio de Natal em que comanda um programa esportivo, alertando-o de que os explosivos recentemente roubados de uma pedreira se destinariam à simulação de uma revolta no presídio de Salvador; no meio da confusão, os quatro seriam assassinados.

"Lemos fez essa denúncia no ar, abortando — se havia — tal plano. Os quatro decidiram entrar em greve de fome a partir de segunda-feira. Dois dias antes, não há nenhum esquema de imprensa estruturado para fazer com que seu protesto repercuta nas principais capitais do País.

"O comitê de solidariedade paulista é imediatamente formado. E André aceita ficar com a missão mais difícil: colocar a greve de fome no noticiário...

"Começa enviando um comunicado à imprensa para cientificá-la da greve. Ninguém publica.

"Convence Lemos a escrever uma carta emocionada à população brasileira, afirmando que, em face de seus (reais) problemas cardíacos, delega ao povo a missão de assegurar a sobrevivência do filho Cícero, caso não possa fazê-lo pessoalmente. Ninguém publica.

"Visita deputados, redações, agências noticiosas. Na do Governo Federal, a Empresa Brasileira de Notícias, quem o atende é um agente do Serviço Nacional de Informações travestido de jornalista. Fazendo-lhe uma ameaça velada:
— O tempo não está bom para os presos políticos e muito menos para quem já esteve preso. Se for pra jaula de novo, é bem provável que nunca mais saia. Ou ir direto pra baixo da terra...

"Tem melhor sorte nos contatos com os correspondentes estrangeiros, que enviam algumas linhas a seus veículos. Mas é pouco para incomodar o governo brasileiro.

"A cada dia, aumenta a apreensão no comitê de solidariedade. André atua em tempo integral, atirando em todas as direções.

"Procura o promotor Hélio Bicudo, que já entrevistara para uma revista, e pede ajuda. Bicudo lhe dá uma apresentação para a Cúria Metropolitana de São Paulo. Acaba conseguindo uma carta anódina na Igreja, na linha por piores que hajam sido seus crimes, esses presos devem ter seus direitos respeitados. Ninguém publica.

"Faz idêntica gestão na OAB, obtém uma carta igualmente cautelosa e também a distribui inutilmente aos jornalistas.

"Manda um fax pessoal a todos os diretores-proprietários de veículos da grande imprensa, alertando-os de que, caso persista o boicote às notícias sobre a greve de fome, frustrando quaisquer chances de atendimento das reivindicações, caberá a eles a responsabilidade por qualquer tragédia que venha a ocorrer.

"Quando já não sabe mais o que fazer ou a quem recorrer, o colunista que escreve sobre o Rio de Janeiro na página de Opinião da Folha de S.Paulo, Newton Rodrigues, dedica todo seu espaço daquele dia ao assunto. Diz que recebeu do jornalista Lungaretti uma denúncia consistente sobre violação dos direitos humanos dos quatro de Salvador, tendo repassado-a ao ministro da Justiça, Fernando Lyra.

"André, que enviara o dossiê a Newton Rodrigues apenas por causa das posições libertárias que este assumia na coluna diária e do seu passado de resistência ao golpe de 1964, fica então sabendo que o veterano jornalista faz parte do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (...). Um golpe de sorte, no momento exato! Os quatro, segundo os médicos, começam a correr riscos mais graves!

"No dia seguinte, Rodrigues relata a seqüência do caso: o ministro determinou ao governador da Bahia, Waldir Pires, que tome as providências cabíveis para que a greve de fome tenha um desfecho humanitário.

"André e o comitê de solidariedade são informados de que o governador baiano oferece aos presos a garantia de não serem mais seqüestrados pela Polícia Federal para reconhecimentos arbitrários, além de estar disposto a permitir que estudem ou trabalhem durante o dia, somente pernoitando na prisão.

"Mas os quatro, empolgados com a mobilização de estudantes de Salvador em seu favor, pretendem prolongar a greve de fome por mais dois dias. Querem arriscar ainda mais a vida para desfrutar seu momento de glória, depois de terem sido vilipendiados pela própria esquerda!

"André compreende seus sentimentos, mas considera o êxito político mais importante do que o desagravo pessoal. Então, na reunião do comitê, ele é incisivo:
— Estávamos sem perspectiva nenhuma e a vitória praticamente caiu do céu. Não podemos permitir, de jeito nenhum, que ela se transforme em derrota.

"Decide-se mandar um ultimato a Salvador: ou os quatro saem imediatamente da greve, ou o comitê de apoio paulista vai mandar um comunicado a todos os jornais expressando sua discordância dessa postura.

"É um blefe pois, a julgar pelos precedentes, ninguém publicaria. Mas, surte efeito. Depois de mais de uma semana sem alimentar-se, os quatro são socorridos e se restabelecem plenamente.

"Como recompensa por ter agido enquanto o PT se omitia, André recebe um insulto insólito do dirigente petista Rui Falcão:
— O Lungaretti e os quatro de Salvador são todos cachorros loucos!"
ÚNICA ATITUDE DO PT: EXPULSAR TODOS ELES

Por último, vale acrescentar que, ao relatar este episódio no meu livro, ainda não havia registros na Internet a que eu pudesse recorrer para complementar o que retinha na lembrança, quase duas décadas depois.

Agora há, embora seja uma notícia bem tendenciosa, refletindo a visão repressiva que se mantinha inalterada nos órgãos de segurança em 1986 (vide aqui). De qualquer forma, serviu para complementar algumas informações imprecisas.

P. ex., a tentativa frustrada de assalto a uma agência bancária de Salvador ocorreu no dia 11 de abril de 1986 e o filho do meu falecido companheiro de coletâneas poéticas Rubens Lemos (1941/1999), que estava entre os militantes presos, era o Marcos Wilson, então com 22 anos.

Embora ficasse conhecido no noticiário como os quatro de Salvador, aparentemente o grupo tinha seis integrantes, dos quais foram identificados cinco: o próprio Marcos, José Wellington Diógenes, Cícero Araújo, Jari José Evangelista e Antonio Prestes de Paula. Talvez algum deles não tenha sido preso, pois a greve de fome, lembro-me bem, foi só de quatro.

Mas, acabaram todos cinco expulsos do PT, que não lhes deu chance de apresentar sua defesa e só se preocupou com os danos à sua imagem pública, não movendo uma palha para evitar que sofressem arbitrariedades na prisão.

9.7.09

NÃO SERÁ EM BRASÍLIA QUE VAI CHEGAR NOSSO CARNAVAL

Quando o Carnaval Chegar é a canção mais emblemática do período que vai da derrota da luta armada até a volta à democracia no Brasil.

Depois que a imensa superioridade de forças do inimigo condenou ao fracasso a heróica tentativa de saírmos da ditadura pela porta da frente, só nos restou mesmo a longa espera de que ela ruísse em decorrência de suas próprias contradições.

Houve, claro, momentos fulgurantes como o do repúdio ao bárbaro assassinato de Vladimir Herzog em 1975, mas todos sabíamos que uma missa não expeliria os militares do poder que exerciam como usurpadores e déspotas.

E existia a resistência cotidiana aos abusos e atrocidades, cujo símbolo mais marcante foram D. Paulo Evaristo Arns e sua abnegada equipe, o embrião do Tortura Nunca Mais.

Mas, não estava em nossas mãos darmos um fim à ditadura. Sentíamos-nos exatamente como Chico Buarque descreveu: "Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar/ Tô me guardando pra quando o carnaval chegar".

Lá por meados da década de 1970, quando terminou o último dos quatro julgamentos a que fui submetido em auditorias militares, eu tive de fazer minha opção: permanecer ou não no Brasil?

Ao sair das prisões militares, ainda sob o impacto de tudo que sofrera nos porões, decidi embarcar tão-logo pudesse fazê-lo legalmente, já que não tinha como montar um esquema de fuga minimamente confiável.

Mas, aos poucos, foram-me voltando os sonhos, as elocubrações sobre o que faríamos quando, findo o pesadelo, pudéssemos finalmente reconstruir este país. "Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar / Tô me guardando pra quando o carnaval chegar".

Muito mais do que quando militava na VPR, tinha a noção exata do que precisava ser feito para o Brasil voltar a ser, pelo menos, uma nação civilizada. Nos bares, nosso refúgio, eu e os amigos discutíamos ponto por ponto as medidas a serem tomadas no glorioso day after.

Era nosso lenitivo para continuarmos engolindo os sapos de cada dia. "E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar / Tô me guardando pra quando o carnaval chegar".

Mas, a classe política frustrou nossas esperanças e destruiu nossos sonhos. Com a ditadura já agonizante, manobrou para que fosse rejeitada a Emenda Dante de Oliveira, que restituiria o poder a quem de direito, os cidadãos eleitores deste país.

E o maquiavélico Tancredo Neves pôde, triunfalmente, anunciar que chegara "a hora dos profissionais". O candidato da ditadura, Paulo Maluf, não seria detonado pelo povo nas urnas, mas sim por umas poucas centenas de parlamentares no Colégio Eleitoral que se constituía num símbolo gritante da exclusão do povo na tomada das grandes decisões nacionais.

Pior: Maluf seria derrotado graças aos votos de congressistas que, como ratos, abandonaram o navio da ditadura que já fazia água, para assegurarem a manutenção dos seus privilégios na Nova República.

A indústria cultural, com a Rede Globo à frente, conseguiu vender a ilusão de que tanto dava a diretas-já quanto a vitória no espúrio Colégio Eleitoral. A longa agonia pública de Tancredo Neves era a peça que faltava no quebra-cabeças. A pieguice obnubilou as consciências. Os maus venceram, como quase sempre.

E tocada, entre outros, pelos que haviam sido sustentáculos da ditadura, a redemocratização ficou pela metade, como convinha à burguesia, que antes exercia o poder por meio dos fardados, depois passou a exercê-lo por meio de civis safados.

Nem sequer foram punidos os assassinos seriais da ditadura. Nem sequer foram devolvidos os corpos de companheiros martirizados. "Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar". E não adiantou esperar o carnaval, pois ele não chegou.

Gato escaldado, nunca mais acreditei que a redenção dos males brasileiros pudesse provir das tempestades em copo d'água da política oficial. Sabia/sei que a chegada do carnaval não depende da desgraça momentânea do Collor, dos anões do orçamento, dos mensaleiros, do Severino, do Renan, do Daniel Dantas ou, agora, do Sarney.

Esses senhores nunca determinaram os acontecimentos, apenas cumprem/cumpriram determinadas funções dentro do sistema de exercício e sustentação do poder burguês. Então, enquanto as funções em si não forem extintas, suas agruras só servirão para jogar poeira colorida nos olhos do povo.

Trata-se apenas de um sacrifício ritual para servir como catarse aos "de fora". Cada vez que um desses espantalhos tomba, a indústria cultural cria a ilusão de que a justiça foi feita e as instituições funcionam. Mas, saem uns, entram imediatamente outros e a podridão continua a mesma.

Há quem me cobre engajamento na caça à bruxa da vez. Negativo. Prefiro gastar minhas energias preparando o carnaval, que só chegará quando os cidadãos assumirem a iniciativa de, eles próprios, colocá-lo nas ruas, sem se deixarem iludir pelo jogo-de-cena brasiliense.

4.7.09

ACREDITE QUEM QUISER: A "FOLHA DE S. PAULO" FICOU À DIREITA DA "VEJA"!

A grande imprensa é uma caixinha de surpresas. O cidadão que no último domingo leu a Folha de S. Paulo e a Veja, deve ter ficado em dúvida sobre qual era qual. Talvez tenha até se beliscado, para ter certeza de não estar sofrendo alucinações.

De um lado a Veja, na matéria Memórias do Extermínio (assinantes da Veja e do UOL podem acessar a íntegra aqui), não só admitiu tranquilamente a veracidade das confissões do Major Curió, segundo quem as Forças Armadas executaram a sangue-frio 41 guerrilheiros do Araguaia depois de prendê-los com vida e manterem-nos presos por variáveis períodos, como até acrescentou detalhes buscados em outras fontes, como se pode constatar nestes trechos:
"Sabe-se agora que o Exército perseguiu e executou os guerrilheiros, mesmo quando eles já não ofereciam mais qualquer perigo aos militares.

"VEJA entrevistou um militar que integrou a equipe de Curió - e participou da execução de ao menos três guerrilheiros. Esse experiente militar (...) aceitou contar em detalhes o que fez, contanto que seu nome permanecesse no anonimato.

"'A ordem era não deixar ninguém sair de lá vivo', rememora o militar. 'Era uma missão e cumprimos o que foi determinado.' Recorrendo a uma identidade falsa, o militar (...) se infiltrou junto à população civil para obter informações sobre a guerrilha. Tempos depois, ele passou a trabalhar na 'Casa Azul', (...) onde o Exército mantinha presos e torturava os guerrilheiros capturados. A ordem, lembra o militar, era extrair o máximo de informações dos presos, (...) quase sempre, por meio de torturas. Depois, assassiná-los. Tudo feito clandestinamente.

"O militar entrevistado foi dos algozes do cearense Antônio Teodoro de Castro, estudante universitário de 27 anos conhecido como 'Raul'. Ele conta que presenciou o interrogatório do estudante: 'Ele tinha fome, vestia farrapos e estava amarelo, parecia ter malária' (...). Mesmo desarmado, mesmo famélico e doente, mesmo depois de contar tudo que os oficiais queriam, Raul não foi poupado. Logo chegou a ordem: eles deveriam levá-lo para fazer um 'reconhecimento'(...), senha para matar. Curió e seus homens, entre eles o militar entrevistado por VEJA, embarcaram Raul e outro guerrilheiro, o estudante gaúcho Cilon da Cunha Brun (...), num helicóptero da Força Aérea...

"...até as terras da fazenda de um colaborador. (...) Após uma longa caminhada, o grupo parou para descansar. Todos se sentaram. Instantes depois, Curió disse aos colegas: 'É agora!' Levantou-se num átimo, mirou seu fuzil Parafal na cabeça de Raul e disparou. O corpo do estudante caiu imediatamente sem vida. Os outros oficiais levantaram-se e descarregaram as armas nos dois. 'Parecia pelotão de fuzilamento', lembra o militar. Eles tentaram cavar uma vala para enterrar os guerrilheiros, sem sucesso. Resolveram cobrir o local com galhos de árvores – e seguiram caminho. Alguns dias depois, o fazendeiro esteve com os militares e reclamou dos cadáveres. 'Os corpos começaram a feder. Os animais já tinham comido quase tudo. Tive que enterrar os restos', disse.

"Aconteceram ainda outras atrocidades. O fotógrafo baiano José Lima Piauhy Dourado, o 'Ivo', tinha 27 anos quando foi capturado pelos militares. Ele fora ferido na clavícula (...). Transportado para a Casa Azul, Ivo passou por uma longa sessão de torturas. Apanhou e conheceu os horrores do pau de arara (...). Conta o militar: 'O cara só gemia'. Gemia, mas, segundo a testemunha, não entregou ninguém. O depoimento do militar é perturbador: 'Ele estava agonizando, pendurado no pau de arara. Alguém se aproximou e derramou um copo-d’água em sua boca. Ele morreu afogado, estrebuchando'.

"O Exército também pagava pela cabeça dos guerrilheiros – e não era metaforicamente. 'Tinha que trazer a cabeça mesmo, para provar que tinha matado', lembra o militar. Cada cabeça rendia 5.000 cruzeiros ao matador. Em valores corrigidos, cerca de 11.000 reais. 'Vi pelo menos umas três', conta.
"FOLHA" DESPERDIÇA PAPEL
E SUBESTIMA OS LEITORES

Enquanto isto, a Folha de S. Paulo foi ouvir dois militares reformados que só repisaram as mentiras propaladas pelas Forças Armadas desde os massacres, mas que foram totalmente desmascaradas a partir da redemocratização: o coronel Gilberto Airton Zenkner e o tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel (assinantes da Folha ou do UOL podem acessar a íntegra aqui e aqui).

Para quê? Para nada. Deus e o mundo já sabiam das execuções. As únicas novidades das revelações de Curió foram o número exato dos executados (pensava-se que fossem menos) e a admissão da verdade por assassino categorizado.

Quem ainda quer ouvir essa conversa-pra-boi-dormir? Vejam, p. ex., a singela justificativa do tal Zenker para o sumiço que os militares deram nos restos mortais dos guerrilheiros executados (para quem acreditar nesta lorota, estou vendendo terrenos em Marte...):
"Numa guerra na selva, não havia muitas condições de sair carregando um corpo. Quando havia um combate, se fazia um buraco e se enterrava [o corpo] ali no mato mesmo. Depois era difícil achar".
Só um trecho não foi desperdício de papel e agressão à inteligência dos leitores, aquele que estabeleceu a hierarquia dos assassinos seriais:
"De acordo com Lício, a cadeia começava no presidente da República, Emílio Médici, passava pelo ministro do Exército, Orlando Geisel, pelo general Milton Tavares de Souza, comandante do CIE (Centro de Informações do Exército), e chegava ao chefe da seção de operações do CIE, coronel Carlos Sérgio Torres.

"Torres enviava as ordens para as equipes de campo, em sintonia com seu superior, Tavares, depois substituído na chefia do CIE pelo general Confúcio Avelino. 'As ordens vinham de Médici, de Geisel, de Milton e de Torres. Os nossos relatórios faziam o caminho inverso', disse Lício'."
GASPARI CONTINUA REVOLVENDO O
LIXO ENSANGUENTADO DA DITADURA

De quebra, a Folha dominical ainda traz o colunista Elio Gaspari repetindo sua já totalmente demolida alegação sobre a participação de Diógenes Carvalho num atentado ao consulado estadunidense em 1968 (assinantes da Folha ou do UOL podem acessar a íntegra aqui):
"O cidadão que em 1968 perdeu a parte inferior da perna num atentado a bomba ao Consulado Americano recebe pelo INSS (por invalidez), R$ 571 mensais. Um terrorista que participou da operação ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 1.627".
Não vou perder meu tempo refutando de novo a falácia que já detonei em março/2008 (ver aqui) e fez com que o jornal da ditabranda fosse condenado a indenizar uma militante caluniada e Gaspari levasse uma humilhante reprimenda pública de um juiz em abril/2009 (ver aqui ):
"No caso em foco não se pode esquecer que a notícia inexata foi produzida por jornalista bastante respeitado por substancial obra em quatro volumes sobre a história recente do país, o que lhe impunha maior responsabilidade na divulgação de informações sobre aquele período."
Já que ele insiste em repetir essa bobagem que foi buscar nos Inquéritos Policiais-Militares da ditadura militar, fantasiosos e contaminados pela prática generalizada da tortura, só me resta repetir o juízo que então formulei sobre o Gaspari: "Como um mero araponga, ele se pôs a revolver o lixo ensanguentado da repressão".

E a Folha, se continuar nesse rumo, acabará não só à direita da Veja como, parafraseando o saudoso Paulo Francis, à direita até de Gengis Khan...
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